Luiz Paulo Faccioli

Histórias essenciais - Bernard Malamud

Luiz Paulo Faccioli


Todos os caminhos levam a Roma. Quinze séculos nos separam da debacle do Império Romano do Ocidente, e seu esplendor permanece bem vivo na memória da humanidade e eternizado nesse adágio. Roma, a Cidade Eterna. O umbigo do mundo. Mas a metrópole à qual os caminhos todos convergem torna-se para Carl Schneider o lugar inóspito onde a toda hora se experimenta a desagradável sensação de que alguém mais esperto chegou primeiro.

“— O senhor deveria ter vindo em julho — disse um agente imobiliário.
— Bem, eu estou aqui agora.”


Nesse diálogo, tão sucinto quanto revelador, o americano rebate o argumento esfarrapado usando de todo seu pragmatismo. Mal sabe ele o que ainda está por vir. Porque precisa alugar um apartamento — na época errada, segundo o corretor, em vista daquilo que se dispõe a pagar. E qualquer premência, estando assim tão longe de casa — e, ainda por cima, contando os trocados —, é sempre sinônimo de dificuldade, seja em Roma ou em qualquer outro destino turístico do mundo. Mas Carl Schneider não viaja a passeio. Ele é aluno de pós-graduação em estudos italianos na Columbia University, veio à cidade de seus sonhos fazer um doutorado sobre o Risorgimento e a essas alturas já percebeu que em Roma quase nada é como querem fazê-lo crer que é. Os obstáculos são tantos e às vezes tão absurdos que, no desespero de alcançar seu objetivo, Carl vai aos poucos cedendo em suas convicções mais caras, até chegar ao cúmulo de se pegar barganhando com um atravessador sem escrúpulos o valor de uma propina. E é claro que a decepção com a cidade já tinha naquela hora adquirido uma dolorosa conotação pessoal.

“Chega um momento na vida de um homem em que ele tem de ir aonde ele deve ir — se não há janelas ou portas, o mínimo a fazer é atravessar a parede”. A frase de Bernard Malamud não está em Eis a chave, o conto cujo entrecho aparece resumido acima, ou em nenhum dos outros doze que compõem O barril mágico, de 1958, seu primeiro livro no gênero e que lhe valeu o National Book Award.

Ela faz parte de uma entrevista do escritor e se referia às dificuldades de seu ofício. Contudo, naquele conto se encaixaria à perfeição — como de resto em qualquer um de seus irmãos de coletânea —, menos pelo viés da glória do que pela impossibilidade ali sugerida. Pois um elemento comum às histórias é seus protagonistas serem todos perdedores: em maior ou menor grau, por ceder à inércia ou apesar de lutar para vencê-la, dando-se conta ou não dessa dura realidade, mas todos inexoravelmente perdedores. Eles são reféns de situações sobre as quais não têm ou não querem ter o menor controle. Tornam-se assim meros joguetes do acaso, cuja tendência, como se sabe, é sempre ao azar, mesmo quando parece que a sorte é quem está embaralhando as cartas. Malamud só não se entrega ao completo pessimismo porque usa o peculiar humor judaico como ingrediente essencial em sua prosa.

Malamud nasceu e cresceu no Brooklyn nova-iorquino e, assim como seu personagem Carl Schneider, estudou na Columbia University e viveu em Roma entre 1956 e 1957.

Seus vínculos com a Itália já tinham sido estabelecidos alguns anos antes, quando se casou com uma italiana, Ann De Chiara. E, sem esconder o desapontamento, ambientou naquele país três contos de O barril mágico: além do Eis a chave, também A dama do lago e O último moicano.

A grande variante dos contos “italianos” em relação aos demais da coletânea é que seus protagonistas dispensam àquele pedaço do Velho Mundo um olhar forasteiro e essencialmente americano. Em A dama do lago, o personagem vai ainda mais longe. Seu nome é Henry Levin, mas, desde que começa em Paris sua viagem à Europa, passa a identificar-se como Henry R. Freeman. O motivo, “não muito claro para ele mesmo — a não ser pelo fato de estar cansado daquela vidinha medíocre que levara até então”, carrega, junto com a óbvia referência no sobrenome escolhido, uma sutil intenção de esconder sua origem judia, o que vai acabar interferindo, de uma forma tão decisiva quanto inusitada, no desfecho da história.
Já em O último moicano, novamente o conflito se estabelece a partir do fracasso do personagem, agora um artista que não deu certo querendo firmar-se como teórico no mundo das artes:

“Fidelman, pintor assumidamente fracassado, viajou à Itália a fim de escrever um estudo crítico sobre Giotto, cujo capítulo inicial atravessara com ele o oceano em uma pasta nova de couro de porco que agora ele agarrava com a mão suada.”

Logo na chegada a Roma, ele se envolve com um vendedor ambulante que passa a lhe infernizar a vida. O manuscrito do qual tanto se orgulha acaba sumindo, e Fidelman acredita ter sido roubado pelo homem. A ação é então transferida à busca obstinada da criatura que antes lhe parecia ubíqua e que de repente desaparece, reforçando assim suas suspeitas. O desfecho contraria a expectativa, mas não poderia ser nenhum outro — virtude, aliás, de todo conto bem-realizado.

Nas histórias que se passam em Nova York, o cenário ganha cores insólitas. Malamud recria na mais cosmopolita das metrópoles do Novo Mundo o cotidiano das antigas comunidades judaicas da Europa Oriental. Nesse contexto, o Brooklyn lembra muitas vezes a Frampol de Isaac Bashevis Singer: uma aldeia perdida no interior da Polônia. E aí percebe-se com nitidez por que a ficção de Malamud é comparada com freqüência à de Singer, embora a primeira tenha talvez mais crueza e certamente menos lirismo. As biografias dos dois escritores, ainda que apresentem aspectos muito semelhantes, têm na realidade diferenças cruciais que vão repercutir nas respectivas obras. Enquanto Singer nasceu na Polônia e imigrou sozinho para a América, trazendo consigo as lembranças da infância que se tornariam mais tarde matéria-prima de sua literatura, Malamud resgatou o Leste Europeu da memória de seus pais e de sua condição de imigrantes forçados tentando refazer a vida longe da pátria. As narrativas de Singer ambientadas na Polônia revelam personagens ingênuos, místicos, ligados à terra e aos ofícios mais rudimentares. Eles ainda não provaram a amargura do exílio nem a complexidade da vida moderna, cujo melhor símbolo é justamente Nova York. O misticismo, por sua vez, dá lugar em Malamud a uma estranheza bem mais sofisticada: desaparecem os demônios e as possessões e entra em cena o anjo mal-ajambrado e negro do magistral Anjo Levine, que desce à terra para cumprir uma espécie de estágio probatório na missão de dar assistência a um desafortunado alfaiate:

“Até aquele dia Manischevitz tinha sofrido tudo com uma surpreendente dose de estoicismo, quase sem acreditar que tanta desgraça lhe caía sobre a cabeça. Era como se aquelas coisas estivessem acontecendo, digamos, a algum conhecido ou membro afastado da família; toda aquela quantidade de tristeza havia se tornado incompreensível para ele. Além do mais, tanto sofrimento chegava a ser ridículo, injusto, e, como ele havia sempre sido um homem religioso, seu infortúnio era, de certa forma, uma afronta a Deus.”

Aqui encontramos outro aspecto importante da ficção de Malamud: o sofrimento humano como matéria literária. A dor é às vezes tão absurda que chega a ser ridícula, ele resume. Rir da desgraça é também uma forma de tentar compreendê-la. E a acidez desse riso conduz a um humor sarcástico — e muito mais corrosivo que o de outros escritores judeus de sua geração.

Muito da força da narrativa vem de sua exemplar concisão. A escritora Jhumpa Lahiri, que assina a introdução de O barril mágico na edição brasileira, diz que “os parágrafos de Malamud são desenvolvidos com tal riqueza de detalhes, tão brilhantemente sucintos, que somos conduzidos de modo rápido e inexorável à vida de cada personagem”. Ele de fato não precisa mais do que uma ou duas linhas para tocar o ponto. E o faz com precisão cirúrgica. Mas Lahiri vai além e revela todo seu entusiasmo com um autor que acaba de conhecer quando diz que os contos de O barril mágico são “histórias essenciais”.

Parece mesmo incrível que tenhamos vivido tanto tempo sem conhecê-las.


Trecho do livro:

“Viajar é realmente uma forma de ampliar os horizontes, pensava ele (...). Porém as ilhas, as duas que visitou, o deixaram decepcionado. Freeman desceu do vaporetto em Isola Bella em meio a uma multidão de turistas de fim de estação falando uma profusão de línguas, principalmente alemão, que de imediato foram cercados por vendedores de bugigangas. (...) O palácio rosado era cheio de móveis velhos sem valor e cercado por jardins artificiais com grutas de cimento e conchas e de estátuas tão pouco refinadas que lhe deram vontade de rir. Apesar de a Isola dei Pescatori ter uma atmosfera mais honesta, com antigas casas coladas umas às outras em ruelas sinuosas e espessas redes de pescar secando em pilhas junto às pequenas embarcações, lá estavam também multidões de turistas a disparar suas máquinas fotográficas a torto e a direito, e toda a cidade vivendo em função deles. Todo mundo tinha algo a vender que se podia comprar em melhores condições no subsolo da Macy’s.”

O autor:

Filho de judeus russos, Bernard Malamud (1914-1986) nasceu em Nova York no ano em que estourou a Primeira Guerra. Dono de uma obra relativamente pequena, que inclui oito romances e alguns livros de contos, ele não tem a mesma notoriedade de outros escritores com os quais se costuma alinhá-lo, dentre eles Isaac Bashevis Singer, Saul Bellow e Philip Roth. Dois livros são considerados suas obras-primas: O faz-tudo, que lhe valeu o Pulitzer e o National Book Award em 1967, e O barril mágico, National Book Award em 1959.

Luiz Paulo Faccioli
Publicado em Rascunho, edição de junho/2007

 

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